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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012


Existe um desacordo aparente entre o status atual de Selton Mello e a homenagem que ele vai receber na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Enquanto o festival, que começa nesta sexta-feira (20), diz que prestará tributo “a um dos nomes em maior evidência nas telas do cinema brasileiro desses últimos 15 anos”, o homenageado tem atraído elogios em função de seu trabalho atrás da câmera, como diretor. Culpa do unanimemente aclamado “O palhaço”. Embora ele também atue no filme, a história vem ocupando os holofotes, e rendendo bilheteria, por ser conduzida pelo Selton cineasta autoral e comunicativo – e não necessariamente pela presença do Selton protagonista. Em entrevista ao G1, por telefone, ele é instado a comparar as duas funções: “Na prática, eu me sinto mais criativo como diretor”.
Antes de estabelecer o paralelo, no entanto, ele falava que “atuar é uma forma de ser autoral também”. “O ator é um camarada pensante, que propõe diálogos, às vezes muda coisas. Sempre trabalhei assim”, avalia. E “sempre”, neste caso, é bastante tempo: se exercesse uma profissão “convencional”, não estaria longe da aposentadoria. Selton acaba de completar 39 anos de idade, em 30 de dezembro – sua estreia na profissão ocorreu quando era criança, na novela “Marrom glacê” (1979).
Ao analisar a questão da autoria, ele se permite discordar de Nelson Rodrigues (1912-1980). “Ele [o dramaturgo, escritor e jornalista] disse que preferia atores ‘burros’, que decoravam e falavam o texto, mas não trouxessem questões. Eu acho importante o ator que questiona, que quer melhorar tudo aquilo. Mas isso vale pra todo mundo: diretor de arte, figurinista...”
Considera-se Selton Mello uma das figuras centrais do cinema brasileiro produzido de 1994 em diante, período consensualmente chamado de “Retomada”. De seu currículo, constam personagens como o Chicó de “O auto da compadecida” (2000), o André de “Lavoura arcaica” (2001), o Leléu de “Lisbela e o prisioneiro” (2003), o Lourenço de “O cheiro do ralo” (2007), o João Estrela de “Meu nome não é Johnny” (2008) e o Pedro de “A mulher invisível” (2009). É uma fauna variada: há tanto produções de apelo popular como propostas de teor artístico. Mas chegou um instante em que tais possibilidades já não bastavam ao Selton intérprete. Ou ao Selton “criador”.

Ele não sabe precisar um fato que lhe tenha despertado a vontade de virar cineasta. Cita, primeiro, uma peça de teatro, “Zastrozzi” (2003), da qual foi protagonista e codiretor. Se existiu um princípio de caminho, provável que foi ali. Em seguida, conta do programa de entrevistas “Tarja preta”, exibido a partir de 2004 no Canal Brasil, do qual foi apresentador e diretor. Na época, houve também a direção do clipe “Flerte fatal”, da banda Ira!. “Não teve esse raciocínio [de se decidir por fazer filmes], foi tudo muito natural”, conta Selton. Uma razão possível, mas não definidora, seriam as eventuais e inevitáveis discordâncias com relação aos filmes nos quais figurou – algo também “natural”, insiste.
“Acho que, quando você é ator, você é uma peça da engrenagem. Eu não sei nem te dizer qual o filme que eu fiz como ator e com o qual concordo em tudo. Tem sempre alguma coisa: ‘Ah, ficou legal, mas ficou longo, ou eu colocaria outra trilha...’. Se é assim, então faz [o próprio filme]!”. Selton fez: o primeiro longa foi “Feliz natal” (2008), sobre o qual, nesta conversa, o diretor pouco falou – o assunto da vez é mesmo “O palhaço”, que estreou em outubro e vem fazendo boa carreira. De acordo com o portal Filme B, que mapeia o mercado cinematográfico, “O palhaço” foi o quinto no ranking brasileiro de 2011, considerando arrecadação (R$ 13,5 milhões) e público (1,4 milhões de espectadores). E o longa segue em cartaz.
Para Selton Mello, fazer um filme é expressar o desejo “de ter seu ponto de vista sobre os temas”. Coautor do roteiro de “O palhaço”, ele dá sua versão para o “tema” da obra: “A base é falar sobre identidade, qual o seu destino, o que você escolheu como profissão. Isto é complexo: como fazer isso de uma forma simples e que toque?”.
A resposta da audiência foi positiva, e Selton arrisca uma explicação – não sem motivo, o “talvez” se repete. “Sinto uma coisa de ‘ufa, que bom, um filme delicado, sensível’. Talvez estivesse faltando essa ingenuidade, talvez um humor menos verbal, não sei. Talvez seja filme certo na hora certa, ele veio cumprir um papel. E a distribuidora apostou, foram 260 cópias, o que foi fundamental.”
Mas, ao tratar das decorrências que “O palhaço” possa vir a ter para o cinema brasileiro como um todo, o diretor não dispensa tentar responder quais as sequelas ele próprio sofreu. Diz que hoje “come o pão de um jeito diferente”. Como assim? Ele reconhece que sua metáfora não é um exemplo de inspiração – “é meio cafona” –, mas entende que ela funciona e resolve prosseguir: “Agora eu vou lá, preparo a massa, coloco no forno, espero assar... Conhecendo isso tudo, não como mais o pão da mesma maneira que comia”.
E o efeito sobre o seu método de atuação? “O efeito... Não sei te dizer, penso tanta coisa. Fui um diretor rígido comigo mesmo, acho até que o meu trabalho em ‘O palhaço’ é um dos melhores que fiz como ator nos últimos tempos”, julga. “É meio esquizofrênico, maluco falar isso, porque talvez só eu saiba que, no meu filme, não vou dar esse mole. Tudo isso pra chegar numa coisa que, aí sim, vai se refletir muito no meu trabalho daqui por diante: a parceria com o Paulo José.”
O que ele herda do intérprete do personagem de seu pai no filme é a “simplicidade”: “O Paulo tem uma característica de ser um ator que faz as coisas de uma forma muito simples, e isso pra mim é um ator de cinema. O melhor ator de cinema é aquele que faz de uma maneira muito simples o que poderia ser muito complexo”.
Essa influência que a nascente carreira de diretor tem em seus trabalhos como ator vai ao encontro do assunto que estará em discussão na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes: “o ator expandido”. No site do evento, Cléber Eduardo, o curador, escreve: “Qual o lugar desse novo ator? Certamente, não é apenas na tela, nem somente diante da câmera”. Estaria resolvida, então, a dissonância sugerida no princípio – homenagear os serviços prestados por um ator agora reconhecido como cineasta. Mas o próprio Selton restabelece alguma contradição. “Tenho essa consciência de que o simples pode ser cada vez melhor. E é dificílimo fazer isso. Só que cada trabalho é um trabalho. Posso estar dizendo isso hoje e amanhã fazer algo completamente exacerbado.”